terça-feira, 27 de março de 2007

Todos os Dias o Miguel Sonha

Quando lhe pergunto porquê, não me responde, apenas me disse uma vez, sub-repticiamente, que quando nasceu o umbigo ficou ligado á lua. Não à mãe, nem ao pai, estranhei, dos quais me apercebo que tem uma relação alheada, apenas à lua. Se é fascínio, não sei... apenas o diz.

Dos seus um metro e sessenta, vagueia por aí, com um cabelo nem claro, nem escuro, de feições pouco marcadas, tal como tudo o que faz. Olhos profundos, mas mortos escondidos pela cara, e rodeado por umas orelhas pequenas, pequenas, como se tivessem sido esquecidas na profunda elaboração do seu corpo rechonchudo e recheado.

Ele vive vivendo, dorme dormindo e acorda sonhando. Nada na sua conquista diária é forte, louco, apenas tudo serve como passagem: uma ponte, um sorriso, uma mulher, um homem. Fala pouco dos seus amores, ou aliás nada. Tudo o que sabemos dele é que sonha. Muito!

Não revela os seus sonhos, diz que são a única coisa que tem dele e não quer partilhar, isso era dar de si. E sim, o Miguel nunca dá de si! De vez em quando larga um sorriso, um sobrolho que se ergue muito pausadamente, e vai libertando algumas palavras da prisão encarcerada que são os seus lábios vermelhos e tórridos.

Já me interroguei sobre ele, aliás todos o fizemos, mas ele funciona assim: vive vivendo, dorme dormindo e acorda sonhando. De episódios do seu dia-a-dia só conhecemos aqueles que partilhámos, nós com uma garrafa de cerveja na mão, e ele sempre com uma garrafa de água com gás natural. Dá-lhe prazer o efeito das bolhas no céu-da-boca, não por que nos diga, mas porque o seu corpo o revela. Não fuma, não bebe! Suponho que não lhe apetece, quando quiser fá-lo-á. Tentámos... mas em vão. Solta-nos um movimento ligeiro, leve e compulsivo. Desistimos! Poderia ser um observador, mas não, olha o vazio e sonha...penso eu..! Do Miguel sabemos com toda a certeza o nome do pai, da mãe, e do irmão, tudo o resto é imaginação... Inventamos histórias de um amante tórrido, de um virginal prostituto, mas nada, nem um movimento, nem uma expressão escandalizada...simplesmente o constante e eterno vazio...

Não sabemos se gosta de ler, de filmes., de televisão, apenas que sonha. Vive entre os outros para saborear o seu sonho. Delicia-se ouvindo, nunca perguntando e extasia-se quando a noite larga o seu vestido...Se dorme, se sonha, sei lá...apenas tenho como certezas que vagueia até casa.

Uma vez, seguimo-lo, a noite ia bem quente entre uns brindes ao curso, que finalmente está terminando. Nada. Sei que nos viu, mas nada se alterou. Passo meio lento, meio apressado chegou ao seu apartamento. Entrou... e de resto, um silêncio, um vácuo no movimento dos carros que por ali passavam. Entre os sussurros de uma noite bem quente viemos para casa tão satisfeitos como fomos. Sem saber absolutamente nada! O Miguel continua um mistério. Entre longas discussões sobre o seu estranho comportamento, nada de normal parecia surgir, muito embora, nós como elementos criativos, quiséssemos enfatizar a situação...paranormal, bipolar, tímido, tudo lhe foi associado, mas nada lhe acentava que nem uma luva. Na melhor das hipóteses, todos nos divertíamos com as suas faltas de atitude, opinião e mesmo presença. Por vezes, esquecíamos que ele estava lá e continuávamos a tentar adivinhar: uma neurose em criança, sociopata, vítima de abuso sexual, de violência doméstica... Tudo era motivo para atirar à sorte o problema do Miguel...O tempo passou, e nada se alterou entre risos e gargalhadas ainda está o silêncio presente do Miguel, aquele que hoje sei que só vive vivendo, dorme dormindo e acorda sonhando... Onde está o problema que tanto lhe queremos associar; ou talvez não exista! Nós sim temos um, o de querer que ele não seja normal; seremos nós os anormais? Acho que agora vivo vivendo, durmo dormindo e acordo interrogando...

Liliana Silva

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