terça-feira, 27 de março de 2007

O tempo destrói tudo



Se pararmos para pensar estamos a meio de um sonho. À partida era só uma cama, sem lençóis de metal nem mesas de cabeceira de velas e candelabros, era simplesmente um colchão vazio e carne humana. Uma imaginação tão fértil que nos atrasa mentalmente, retardando o cúmplice motivo da percepção. É a cultura, estúpido! Diz-se por aí. Pensar é, estranho. Pensa-se por todo o lado. Se pararmos para pensar, acordamos. Fugir às verdades num acto de desconsolo. Se lá estivermos, onde quer que seja, somos jogadores. Jogamos as coisas e arriscamos a vida, por mais facciosa ou falaciosa que seja. Se nos sugerem desconfiamos, como fazemos com o Cinema. Com a Arte. A Cultura, essa que poderia existir, se no transe completo ainda houvessem almas que fosse, que quisessem fazer, confeccionar, colocar à prova. Se do risco não surgissem consequências, a Arte seria bosta de cavalo. Não estaríamos de forma alguma agradados com ela.

Falo-vos de nada, porque o tempo destrói tudo. É Noé que assim o diz, ainda que não esteja sozinho. Se no universal sono todos estão desligados, no sonho global há alguns que se encontram atentos. Porque um interruptor só interrompe um estado, não uma causa. Se Irrevèrsible é um filme, é também uma vida, que há para ser vivida como outra qualquer. Enquanto vegetais, Irrevèrsible é de facto bosta de cavalo. Enquanto Homens, é um murro no estômago. É um despertador. Um terramoto, um meteorito, uma nova espécie a acolher. Eisenstein disse uma vez que a montagem poderia sugerir elementos compostos que actuassem como sensações primárias. Gaspar Noé forneceu, na prática, toda a teoria dos mestres analistas. O que é o Cinema? É nada. Medo, choque, revolta, compaixão. Sentimentos despoletados pela capacidade técnica do cinema de Noé: as suas características e dispositivos ajudam a reproduzir efeitos ilusórios na película, adequados à ideia, temática e objectivo do filme. É assim que Noé filma e, apreciando-se ou não, é de interesse investigar os seus processos de planificação, composição, iluminação e coloração, para um cinema mais vivo, cativante ao olho e repleto de emoções.

Coitados de todos nós, de todos vós, que o sono só interrompem para comer. Se não se calassem tanto até poderíamos ter discussão, nem que fosse acerca de beterrabas. Se vissem, se olhassem, se quisessem, teriam o mundo inteiro a debater, não só a qualidade dos bitoques e as vitórias do Benfica. Mas não só a imaginação faz o Homem, a procriação também. E se essa estiver em acordo mútuo, está tudo feliz, tudo contente, tudo a dormir... antes de um fantástico e provável orgasmo.

E se vissem filmes? Se os olhassem? Se lessem com olhos de quem lê e quer ler, de quem quer ver o que há para ser visto? Se procurassem, para matar o tempo em que fazem tudo menos alguma coisa? Ou então... não se preocupem. Não se incomodem. Não percam o tempo que têm para algo, esperem que o tempo destrua tudo, como nos filmes... de braços para a frente, e cruzes ao fundo.

Durmam... mas acordem bem dispostos.

Paulo Santos

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